Texto por Mayra Guapindaia
Hoje, dia vinte e três (23) de agosto, entra em circulação o penúltimo selo da série 200 anos da Independência, alusivo à participação do Brasil nas Cortes Gerais de Lisboa.
A reunião da Corte Geral da Nação portuguesa entre 24 de janeiro de 1821 e 4 de novembro de 1822 foi consequência direta da Revolução do Porto. O movimento foi inspirado pelos ideais liberais da época, e de acordo com a experiência da Constituição de Cádiz, assinada pelo Rei Espanhol Fernando VII em 1820. Assim, deputados de diversas regiões de Portugal foram eleitos para discutir, nas Cortes Gerais, a primeira Constituição Portuguesa, da qual seria signatário o rei de Portugal.
Inicialmente, não havia a previsão de participação de deputados brasileiros, o que gerou uma série de protestos. Finalmente os deputados das províncias brasileiras que demonstravam apoio à Revolução do Porto, foram escolhidos e tomaram assento na Assembleia somente em agosto de 1822. Nem todas as províncias eram a favor das Cortes e, especialmente, do retorno de D. João VI à Portugal. Minas Gerais, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul não enviaram deputados, permanecendo no Brasil em favor ao então Príncipe Regente D. Pedro.
As Cortes de Lisboa fazem parte do longo processo histórico que culminou na Independência do Brasil. Seu contexto importa na medida em que permite perceber o gradual afastamento entre os interesses dos deputados brasileiros e portugueses, o que levaria posteriormente à decisão brasileira pela ruptura política.
Não obstante esta falta de conciliação, é inegável que as Cortes de Lisboa para o Brasil significaram a participação de uma primeira experiência parlamentar para a construção de uma carta constitucional. Portanto, as Cortes influenciaram diretamente a experiência parlamentar brasileira posterior, ou seja, após a Independência. Isso pode ser notado na própria estrutura organizacional da Constituinte de 1823 e, posteriormente, no texto constitucional de 1824, que guarda inúmeras semelhanças com a Constituição Portuguesa de 1822.
Um dos pontos de sincronia diz respeito justamente às discussões parlamentares sobre a questão da Administração dos Correios e da garantia do direito individual, por parte do Estado, da inviolabilidade das cartas. Este debate estava de acordo com a visão liberal da época da manutenção da privacidade como extensão dos direitos fundamentais. Ele aparece tanto nas atas das Cortes de Lisboa quando na documentação referente à Assembleia Constituinte em, 1823.
Historicamente, a questão do sigilo das cartas não é nova, e não surgiu somente com o liberalismo político do século XIX. As Ordenações Filipinas, compilação jurídica portuguesa do século XVII, continha um artigo intitulado Dos que abrem as cartas do Rei, ou da Rainha, ou de outras pessoas, condenando a abertura indevida de cartas e prevendo sanções que poderiam acarretar até em pena de morte. Já em final do século XVIII, com as reformas postais em Portugal e em seus domínios ultramarinos, uma série de normas foram publicadas. Em algumas, é possível perceber o refinamento da questão da segurança da correspondência, que ficava cada vez mais no encargo dos Correios como instituição pública de Estado. O empregado dos Correios, que, a esta altura já era um funcionário público, pago pelo real erário, que cometesse o crime de abrir cartas, deveria ser preso e punido segundo as leis.
É principalmente no período das reformas postais de 1798 que, cada vez mais, os Correios passam a ser valorizados como uma questão de Estado. Vale lembrar que, antes deste ano, os serviços postais eram monopólio privado de uma família, os Gomes da Mata, que tinham direito à exploração financeira da entrega de cartas. Toda a estrutura operacional e administrativa também era provida por esta família, sem recair nas mãos da monarquia. Em 1797 o ofício de Correio-mor foi reintegrado ao patrimônio régio, e os Correios passam a ser providos diretamente pela Coroa. Assim, a contratação de funcionários, manutenção das malhas postais e a segurança das cartas passou a fazer parte das responsabilidades diretas do Estado.
Esta estrutura dos Correios, tanto no Brasil quanto em Portugal, se manteve intacta durante o primeiro quartel do século XIX. Entretanto, na altura da reunião das Cortes de Lisboa, em 1821, havia muitas denúncias e insatisfações quanto ao serviço postal. Os deputados estavam preocupados com o desvio das cartas que muitas autoridades e pessoas importantes sofriam. Isso significava que a Administração Postal não estava agindo de acordo com as normas que a regiam desde 1798. Além disso, entrava em discussão o princípio liberal do direito à privacidade, algo que até então estava ausente das discussões políticas. Na seção de 8 de junho de 1821, o deputado Pereira do Carmo dá um exemplo concreto da desconfiança da abertura de cartas no serviço postal e como, por isso, os correspondentes preferiam escrever cartas sem muitos detalhes sobre assuntos sigilosos:
Satisfazendo ao que prometi na Sessão de ontem, isto é de reforçar a indicação do senhor Baeta acerca da falta de pontualidade na administração dos Correios. Ponho sobre a Mesa uma Carta assinada por Frei Joaquim do Sagrado Coração de Maria, morador no Convento do Senhor da Fraga, junto a Viseu, em que se desculpa de me não escrever Carta volumosa, e de não pôr no Sobrescrito o meu cargo de Deputado, porque nos Correios se abrem, e somem (diz elle) as cartas volumosas ou extraordinárias, dirigidas aos senhores Deputados, nas quais se presumem inclusos alguns papéis, que devem ser apresentados ao Soberano Congresso, pertentendo-se por esta maneira cortar acintemente as communicações entre a Nação e seus Representantes.
Para evitar a quebra do sigilo das cartas, e a responsabilização da Administração de Correios e dos agentes responsáveis, os deputados incluíram na Constituição Portuguesa de 1822, no Título 1: Dos direitos e deveres individuais dos portugueses, o artigo 18º, que afirma: o segredo das cartas é inviolável. A administração do correio fica rigorosamente responsável por qualquer infração deste artigo.
Os debates que ocorreram na Assembleia Constituinte brasileira de 1823 foram similares aos das Cortes de Lisboa, e muitos deputados apontaram a falha da Administração de Correios em manter o segredo das cartas. E, como consequência dessas discussões, o Artigo 179 da Constituição Brasileira de 1824, que garantia a inviolabilidade dos direitos civis, e políticos dos cidadãos brasileiros, tendo por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, trazia, no item XXVII, o exato mesmo conteúdo da Constituição Portuguesa de 1822 sobre a inviolabilidade das cartas.
Ou seja, a partir deste debate da primeira experiência constitucional portuguesa, ficou reconhecido o direito individual ao sigilo das comunicações à distância, sendo que os Correios foram os principais responsáveis pela manutenção deste interesse de cada cidadão. Com este caso, podemos perceber como o sistema postal, em Portugal e no Brasil, foram reconhecidos enquanto instituição pública essencial para a manutenção de direitos básicos de cidadania.
Referências:
BRASIL. Constituição política do Império do Brasil (25 de março de 1824). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm>. Acesso em: 27/07/2021
CABRAL, Dilma. Cortes gerais e extraordinárias da nação portuguesa. Disponível em: <http://mapa.an.gov.br/index.php/dicionario-periodo-colonial/164-cortes-gerais-e-extraordinarias-da-nacao-portuguesa>. Acesso em: 27/07/2021.
DOLHINKOFF, Miriam. História do Brasil Império. São Paulo: Contexto, 2020.
POTTUGAL. Constituição de 23 de setembro de 1822. Disponível em: <https://www.parlamento.pt/Parlamento/Documents/CRP-1822.pdf>. Acesso em: 27/07/2021
PORTUGAL. Diários das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa. Anos 1821 e 1822. Disponível em: <https://debates.parlamento.pt/catalogo/mc/c1821>. Acesso em: 27/07/2021