Construir e Representar a República: o discurso oficial nos selos postais do Brasil

Desde o surgimento do primeiro selo postal na Inglaterra, em 1840, ele cumpre um papel que vai além da demonstração do pagamento da tarifa de uma carta. O penny black, por trazer a figura da Rainha Vitória, constitui o primeiro exemplo do que esse comprovativo de porteamento veio a ser ao longo da história: a representação simbólica de uma figura de poder. Por este meio, divulgava-se e afirmava-se a imagem da soberana diante de seus súditos. O selo, portanto, deve ser entendido como um documento histórico envolto por ideologias e relações de poder. Ao longo do tempo, diversos Estados buscaram afirmar os símbolos que consideravam necessários para a manutenção de determinados regimes políticos. No Brasil não foi diferente. Embora os primeiros selos brasileiros, os Olhos-de-boi, não trouxessem em sua imagem qualquer relação com o cenário político, alguns anos depois, em 1866, o Imperador D. Pedro I foi focalizado.

Com a mudança do regime monárquico para o republicano, em 1889, as emissões lançadas a partir daquele ano cumpriam um papel claro de tentar fortalecer, por meio de símbolos, o novo sistema político então adotado para o país. Por isso, neste dia 15 de novembro, no qual tradicionalmente se comemora a proclamação da República, é oportuno refletir como os primeiros momentos do regime republicano foram delineados pela construção simbólica como forma de afirmação política. Nesse sentido, os selos postais podem ser considerados documentos relevantes para entender essa questão.

A proclamação da República no Brasil não contou com a participação popular e esteve ligada mais aos anseios de mudança de grupos de elite ligados ao poder. Os apoiadores da República eram, principalmente, os militares e as oligarquias do café, que há algum tempo se demonstravam insatisfeitos com os rumos tomados pelo governo imperial. A destituição de D. Pedro II, vinda a partir de uma ação militar, não contou com a participação direta do povo. Logo, o nascente regime republicano, frágil em suas bases, necessitava garantir a unidade nacional a partir do apelo ao imaginário popular, por meio da construção de novos símbolos. Contudo, não houve uma ruptura total com o regime anterior, haja vista que alguns símbolos imperiais se mantiveram. Exemplo disso são as cores e parte do formato da bandeira nacional e a melodia do hino nacional, composto em 1831.

A alegoria republicana: Marianne

Se, anteriormente, a figura de do rei era imperativa, agora, era necessário adotar outros símbolos que representassem a República como o regime do momento. E, assim, foi adotada a figura de Marianne. A influência, nesse caso, vem da Revolução Francesa que, ao derrubar a monarquia e instaurar a república, adotou uma alegoria feminina como representação da pátria.

A versão brasileira da alegoria republicana ganhou espaço nos selos postais pela primeira vez em 1891. A tentativa de remeter ao caso francês é visível, uma vez que a primeira Marianne do Brasil trazia na cabeça um barrete vermelho, símbolo típico da Revolução Francesa. Todavia, a versão que figurou em selos postais também foi representada de outras formas. Um exemplo foi a colocação de louros ou ramos de café para ornar a cabeça, sendo que este último símbolo também tinha resquícios do passado monárquico.

A História brasileira recontada pelos selos postais da 1ª República

Outra estratégia de fortalecimento simbólico foi a adoção de determinados fatos ou figuras históricas como representantes ou heróis do novo momento político. Tal uso do passado está atrelado ao que o historiador Eric Hobsbawm chama de “Invenção das Tradições”. Assim, revoltas coloniais do período português, a exemplo da Revolução Pernambucana, foram resgatadas sob uma ótica muito particular: como antecessores lineares do regime presente. Ou seja, a República instaurada em 1889 era vista como consequência lógica destes movimentos. Foi também neste momento que Tiradentes, até então considerado figura pouco relevante da Inconfidência, foi construído como “Herói Nacional”.

Vale lembrar que, em muitos desses movimentos republicanos anteriores à Independência do Brasil, embora fosse evocada a formação de uma República, nem sempre ela era um conceito claro de organização política. No Antigo Regime, a palavra “República” podia ter diversos significados, sendo alguns deles bem diferentes daqueles adotados no final do século XIX.

Os selos postais permitem compreender este tipo de tradição inventada. Um caso interessante é a emissão lançada em homenagem ao Centenário da Revolução Pernambucana, em 1917. Neste mesmo ano, a bandeira adotada pelos revolucionários foi eleita como a bandeira de Pernambuco, o que demonstra a tentativa em construir um passado ligado a movimentos republicanos anteriores. O selo postal é justamente um dos elementos de comunicação que buscou, no momento do centenário, dar coerência a esta simbologia da origem/criação da República brasileira no passado colonial. Mais notável ainda foi o fato deste selo ter sido “reeditado” por conta do Bicentenário da Revolução, em 2017. Como base para a nova emissão, a bandeira de Pernambuco também foi adotada, mas, dessa vez, devido às técnicas mais avançadas de impressão, aparece em cores. Ou seja, a República da atualidade ainda busca sua coerência em símbolos do passado.

Existem outras alusões ao passado colonial nas quais figuram símbolos republicanos, como os primeiros selos comemorativos de 1900, alusivos ao 4º Centenário do Descobrimento do Brasil. Os períodos representados, em ordem, culminam no novo regime: Descobrimento do Brasil, Independência, Abolição da Escravidão e República (neste caso, representada pela figura feminina de Marriane/Liberdade).

Selos comemorativos ao 4º Centenário do Descobrimento: a república representada como fim lógico e linear na História do Brasil

Mais interessante ainda são os selos da mesma época na qual a alegoria da República aparece “invadindo” momentos históricos nos quais o regime ainda não existia. Um dos selos alusivos ao centenário da abertura dos portos traz o então Rei de Portugal, D. Carlos I e o Presidente do Brasil, Afonso Pena. Além disso, a imagem central focaliza a alegoria à República entregando a um viajante português da época colonial a bandeira do Brasil. Assim, a abertura dos portos, evento ocorrido em 1808, foi relido sob uma ótica do presente, republicana.

Selo ao Centenário da Abertura dos Portos, 1908 – Repleto de símbolos republicanos em conjunto com elementos históricos alusivos a 1808

A emissão do Centenário da Independência, de 1922, além trazer o famoso quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo, é composta por mais dois selos. Em um deles, há a figura de D. Pedro I e de José Bonifácio, figuras do Império, porém, ambos ornados pela alegoria feminina da República/Liberdade e ramos de café. E, o último selo, também seguindo a lógica linear, traz a figura do presidente Epitácio Pessoa e a imagem do Rio de Janeiro, então capital do país.

Este “retorno” a alguns selos da 1ª República ajuda a refletir, neste 15 de novembro, sob uma ótica histórica, como os símbolos nacionais foram construídos a partir de um momento de disputa do poder, no qual o novo regime, diante do passado monárquico, precisava ser afirmado no campo das representações. E, na época, os selos postais foram um dos meios de comunicação utilizados para atingir este propósito.

Publicado em Programação Filatélica 2019 | Deixar um comentário

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