Selos Postais e Saúde Pública: o caso da campanha do mal de Hansen

Desde a sua criação em 1840, e difusão por diversos países do mundo, os selos postais representaram não só o pagamento adiantado do porteamento de uma carta, mas também passaram a divulgar determinados aspectos históricos e culturais considerados relevantes pelas suas entidades emissoras. Sobretudo, os selos estão associados à construção de uma determinada imagem do passado ou do presente associado aos interesses oficiais do Estado e de alguns grupos sociais específicos.

O registro de jubileus e personalidades passadas entendidas como “heroicas” é um exemplo disso. A marcação da passagem de aniversários e eventos considerados importantes é algo típico das repúblicas do fim do século XIX que necessitavam afirmar-se diante da sociedade. Em um processo entendido como “tradição inventada”, Hobsbawn (1997) reconhece o “valor publicitário dos aniversários” e considera os selos postais comemorativos um dos maiores exemplos da utilização dessas imagens para fins oficiais.

Mas não são somente as datas comemorativas que cumprem essa função divulgadora e propagandística de determinados governos diante da sociedade. A divulgação de campanhas públicas, como, por exemplo, àquelas voltadas à saúde, também ganharam espaço significativo nos selos postais. E, ao analisarmos os aspectos históricos dos selos com os motivos voltados para a saúde, percebemos que eles estão diretamente atrelados a medidas oficiais relativas a este assunto. Em tempos de pandemia, aonde a intervenção correta do Estado é essencial para manter crises sob controle e o bem-estar dos seus cidadãos, faz sentido voltarmos o olhar para a história da saúde pública no Brasil e como os selos foram utilizados como artifício de divulgação de certas campanhas e informações.

Com o objetivo de tratar de tal questão, este texto abordará a Campanha Contra o Mal de Hansen, amplamente divulgada em selos postais entre 1952 e 1994. Este recorte foi escolhido devido à abrangência temporal da campanha em selos e também devido à sua vasta repetição ao longo dos anos. Ao todo, foram lançados 45 selos em um período de 42 anos. Durante esse período, as políticas públicas em relação à hanseníase modificaram-se substancialmente. Os selos, contudo, continuaram sempre sendo divulgadores da campanha.

A Hanseníase como questão de saúde pública

A hanseníase, ao longo de sua história foi conhecida como lepra e seu nome moderno se dá devido à Gerard Amauer Hansen, que descobriu em 1873 o bacilo causador da doença. É um dos males mais antigos da humanidade, havendo registro de sua manifestação já na antiguidade. Foi durante a Idade Média que surgiram os primeiros leprosários, normalmente ligados às atividades da Igreja, locais aonde os doentes eram isolados de forma sistemática. Como foi uma doença sem cura durante muito tempo, a forma utilizada para evitar o contágio era o confinamento de indivíduos em espaço restrito.

Durante um longo período, os hansenianos sofreram preconceitos e violação de seus direitos individuais devido ao desconhecimento em relação à causa e à cura da doença. Quando os tratamentos modernos foram desenvolvidos possibilitando a remissão da doença, já na segunda metade do século XX, o tratamento em relação a essas pessoas mudou consideravelmente, possibilitando que estes vivessem em sociedade. Atualmente, as políticas públicas voltam-se para a prevenção à doença, mas também para o combate ao preconceito e para medidas que garantam o diagnóstico precoce.

No Brasil, foi no início do século XX que o combate à hanseníase tornou-se questão de política pública. Em 1920, a criação do Departamento de Saúde Pública dirigido por Carlos Chagas possibilitou a articulação de planos de combate à lepra, como então era conhecida, em nível nacional. Em 1923, como medida profilática, foi adotado o internamento compulsório dos doentes. Ou seja, toda pessoa que fosse atingida pela hanseníase, seria obrigada a isolar-se em colônias agrícolas, sanatórios, hospitais ou asilos (LAGES, s\d, p.10). Essa decisão, embora buscasse a contenção da doença, tinha como grande desvantagem a alienação dos portadores do restante da sociedade, negando-lhes a possibilidade de uma vida junto às suas famílias.

Durante a Era Vargas, outras medidas foram tomadas, que também se caracterizavam pela existência de sistema de clausura. Com a criação do Ministério da Saúde, em 1941, coordenado por Gustavo Capanema, surgiu o Serviço Nacional de Lepra que, por atuação policial, tinha como objetivo localizar e obrigar os doentes a serem internados.

Contudo, com a descoberta de novos tratamentos a partir de 1940, a política de internamento compulsório acabou por ser revista e eventualmente suspensa. No Brasil, isso ocorreu já nos anos 1960. Nesta mesma década, diversos estudiosos do tema sugeriram mudar o nome de lepra para hanseníase, como forma de acabar com o estigma. No Brasil, a nomenclatura foi oficialmente adotada em 1976. A tônica das políticas públicas, portanto, passa a ser de combate ao preconceito. De acordo com Letícia Maria Eidt Todas as pessoas envolvidas com a doença devem divulgar, sempre que possível, os novos e atuais conceitos sobre a hanseníase: doença curável, de baixa contagiosidade e contra a qual a maioria da população tem defesas imunológicas naturais (p.85).

A Campanha contra o mal de Hansen nos selos postais brasileiros

Os selos postais sobre hanseníase abrangem um período relativamente longo, no qual as políticas de saúde pública sobre o assunto mudaram expressivamente. O primeiro selo é de 1953, portanto, antes do internamento compulsório ser abolido por lei. Embora abarquem momentos de mudanças no tratamento e divulgação pública de informação da doença distintos, é interessante notar que os selos utilizam recursos imagéticos fixos. Como forma de personificar a campanha, o governo utilizou figuras da Igreja Católica como meio de divulgação da mensagem acerca da doença. Especificamente, a utilização, por repetidos anos, da imagem de três clérigos da Igreja católica que, ao longo de suas histórias, se envolveram com trabalhos de caridade junto aos portadores de hanseníase: Padre Damião (7 vezes selo postal), Padre Bento (15 vezes selo postal), e Padre Santiago Uchôa (4 vezes selo postal). Alguns outros clérigos aparecem de forma esparsa e, como exceção, existem dois selos da servidora social Eunice Weaver.

É interessante notar que estes selos surgiram como tarifa complementar, a ser acrescida no porte de todas cartas durante a semana da Campanha contra a Hanseníase, como forma de angariar fundos para o tratamento dos doentes. O Edital 68/57 do Departamento de Correios e Telégrafos, Diretoria de Correios, Comissão Filatélica, de 04/11/1957 nos permitem levantar a informação de que a taxa adcional de CR$ 0,10 centavos seriam cobrados na “Semana de Combate à Lepra” pelo selo do Padre Bento.

Padre Damião

Nasceu em 1840 na Bélgica. Com 20 anos, entrou na Congregação dos Padres Sagrados Corações de Jesus e Maria. Em 1863 foi para uma missão no Hawaí e lá ordenou-se sacerdote. Voluntariou-se para trabalhar na ilha Molokai, aonde eram confinados os doentes de hanseníase. Foi contagiado pela doença após 12 anos de trabalho. Faleceu em 1889.

Padre Bento

Nasceu em Itú, SP, em 1819.Ordenou-se sacerdote em 1843 e passou atuar junto aos hansenianos em 1869 na cidade de Itu e construiu uma casa de recolhimento para os doentes na margem da estrada Itu-Porto Feliz. Viveu neste local até sua morte em 1911.

Padre Santiago Uchôa

Chegou da Europa à Goiás em 1914. Em 1917 foi para a paróquia de Pirenópolis. Nesta cidade, em área nomeada Pequizeiro, viviam em isolamento os doentes do mal de hansen e lá recebiam ajuda e recursos de irmandades religiosas. Padre Santiago todas as tardes ia ao lugar auxiliar os doentes e, por isso, acabou por contrair a doença. Internou-se e um sanatório em São Paulo e, posteriormente, em Minas Gerais, ali permanecendo até sua morte, em 1951. Foi filatelista, o primeiro a entrar em Goiás e estimulava o colecionismo.O selo com sua imagem em 1994 foi o último da campanha de Hansen emitido pelos Correios.

Eunice Weaver

Eunice de Sousa Gabbi nasceu em 1904 em São Paulo. Em 1927 casou-se com Charles Anderson Weaver com quem fez excursões acadêmicas por todo o mundo. Cursou Serviço Social na Universidade da Carolina do Norte. Em 1930, seu marido tornou-se diretor do Colégio Granbery em Juiz de Fora, aonde Eunice deu aulas de história e geografia. Em seu retorno ao Brasil, dedicou-se à assistência social aos doentes hansenianos, e fundou a Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra, responsável por mantimentos do leprozário Santa Isabel em Nelo Horizonte. Suas atividades tiveram importante reverberação nas políticas de saúde pública em relação aos que sofriam da doença, sendo base para programas de governo como o Plano de Combate à Lepra, sob responsabilidade do ministro Gustavo Capanema durante o período Vargas.

Portanto, foi possível perceber como os selos postais, durante um período longo de 4 décadas, foi uma forma de divulgação da campanha de saúde publica relacionada à Hanseníase. Ao longo deste tempo, novas descobertas e entendimentos do melhor tratamento da doença muito se modificaram. Atualmente, o Brasil ainda é um país com grande número de casos anuais de hanseníase, e o novo posicionamento do tratamento ambulatorial dos pacientes e não mais do seu internamento compulsório representam um grande avanço nesta questão. Entretanto, os selos, ao longo do tempo, permaneceram na utilização de imagens específicas, ou seja, de personalidades consideradas icônicas no tratamento e cuidado dos portadores de hanseníase.

Referências Bibliográficas

DUCATTI, Ivan. A hanseníase no Brasil na Era Vargas e a profilaxia do isolamento compulsório: estudos sobre o discurso científico legitimador. Tese de doutorado em História Universidade de São Paulo, 2008.

EIDIT, Letícia Maria. Breve história da hanseníase: sua expansão do mundo para as Américas, o Brasil e o Rio Grande do Sul e sua trajetória na saúde pública brasileira. Saúde e Sociedade v.13, n.2, p.76-88, maio-ago 2004, p.76-88.

CORREIOS do Brasil. Editais de selos comemorativos e especiais. Disponível em https://apps.correios.com.br/biblioteca/index.html

HOBSBAWN, Eric. A Invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

LAGES, Cintia Garabini. Direitos humanos e saúde pública: a história do tratamento da hanseníase no Brasil. Disponível em <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=d46e1fcf4c07ce4a>.

Publicado em Filatelia, Programação Filatélica 2020 | 5 comentários

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