60 anos de Brasília nos selos postais: a construção da memória da cidade

Texto por Mayra Guapindaia

A construção de Brasília faz parte de um processo histórico pouco linear. Diversas foram as propostas para a transferência da capital do Rio de Janeiro para o centro do país, sendo que essa discussão pode ser remontada ao século XVIII. Embora as sugestões de transferência da capital para o interior sejam antigas, Brasília, sua concepção e construção, está inevitavelmente ligada ao Brasil dos anos 1950 e ao pensamento desenvolvimentista que animou o Governo de Juscelino Kubitschek. Também perpassa pela ascendência da arquitetura modernista que ganhou espaço no Brasil desde os anos 1920. Como Brasília, os selos postais também são filhos de seu tempo. Assim, quando voltamos o olhar para as emissões sobre a capital federal, percebemos que determinados elementos são destacados de acordo com a mensagem e a estética que, naquele momento, se buscava passar. As lembranças de Brasília presentes nos selos fazem parte da construção da memória da cidade pelas entidades envolvidas nas emissões. A criação de um selo nunca parte de uma vontade unilateral. Além dos Correios, estão envolvidos também a sociedade civil (que muitas vezes sugere o motivo), instituições políticas, e a visão do artista responsável pelo processo criativo que resultará na arte final. Tendo em vista este complexo processo, qual foi a Brasília imaginada nos selos postais brasileiros ao longo do tempo? Que elementos foram selecionados para a construção desta memória? Esta exposição virtual tem o objetivo de fornecer informações aos seus visitantes para que respondam este e outros questionamentos.

Projetos de interiorização da capital

Os projetos de transferência da capital para o interior são antigos e remontam, pelo menos, do século XVIII. Contudo, esses planos, que perpassam pelo sonho de Dom Bosco e, posteriormente, pela Missão Cruls, não podem ser entendidos como predecessores lógicos de Brasília. Os argumentos para a construção de uma capital no interior, antes dos anos 1950, obedeciam outras lógicas próprias de seu tempo. Além disso, os planejamentos, projetos e opiniões de como deveria ser este novo centro político e até o local indicado para construção variou de acordo com a época e com os especialistas que emitiram estas opiniões.

A missão comandada por Luiz Cruls foi organizada em 1892 pelo governo brasileiro, uma vez que a Constituição de 1890 previa a transferência da capital para o centro do país. Assim, a Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil fez estudos acerca da área, indicando o melhor lugar para a construção da nova cidade. Embora nada tenha ocorrido até metade do século XX, Brasília atualmente se encontra erguida na área indicada por Cruls como a mais propícia. No entanto, ao longo do tempo, outros projetos também foram responsáveis por eleger outras localidades possíveis para a capital.

Dom Bosco, em agosto de 1883, teve um sonho no qual visitava a América do Sul, local no qual nunca esteve em vida. Foi nos paralelos entre 15º e 20º que visualizou uma “terra prometida”, de onde jorraria leite e mel. Simbolicamente, este sonho do santo sempre foi resgatado como uma visão da futura capital, sendo seu nome até hoje lembrado nas representações da cidade.

Os primeiros selos postais de Brasília

A memória de Brasília nos selos postais inicia-se tão cedo quanto a inauguração da própria cidade, em 21 de abril de 1960. Estes cinco selos, focalizando o Palácio da Alvorada, Plano Piloto, Torre de Brasília, Catedral e Congresso Nacional, foram emitidos para marcar esta data oficial. No carimbo, estão representados o Palácio da Alvorada e o presidente Juscelino Kubitschek. Estes selos revelam a imagem inicial que se queria passar da cidade, a qual deveria ser reconhecida por seu traçado urbano único, sua arquitetura monumental e, sobretudo, como centro político do país.

No edital dos selos que se encontram no Acervo do Museu dos Correios, em Brasília, é possível levantar a informação de que estes selos foram “o primeiro trabalho da nova Comissão Filatélica”, regulada por decreto de 1958 assinado pelo próprio presidente Juscelino Kubitschek.

Os aniversários de Brasília

10 anos

Os primeiros selos comemorativos do aniversário de Brasília são relativos aos seus 10 anos. Em 1970, uma série de 3 selos é lançada, constando neles o Itamaraty, o Palácio da Alvorada e o Congresso Nacional. Mais uma vez, a capital federal é relembrada por suas construções, sem fazer referência visual às pessoas. A arquitetura era um dos elementos formadores que, na visão da época, davam à cidade sua característica inovadora. O Edital do selo considera-a “a maior obra de engenharia dos tempos modernos”. O texto não deixa de evidenciar, contudo, o elemento humano, considerando os trabalhadores “candangos” como “a verdadeira força propulsora que permitiu a inauguração da cidade”.

Neste mesmo ano, o aniversário da cidade também foi destacado a partir de um selo relativo ao 8º Congresso Eucarístico Nacional. Este evento católico e o aniversário de Brasília estavam então interligados, como nos deixa perceber o texto do Edital do selo: “Um dos motivos que concorreram para que a Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros decidisse escolher a Capital do Brasil como sede do VIII Congresso Eucarístico Nacional, foi certamente a comemoração do X Aniversário da fundação desta cidade.”

25 anos

O aniversário de Brasília é comemorado novamente em selos postais nos seus 25 anos, na qual a escolha das imagens também foi de construções. Dessa vez, foram representados o Catetinho, a primeira residência de JK durante a construção de Brasília, e o Teatro Nacional.

50 anos

No cinquentenário, as emissões novamente voltam-se para o patrimônio arquitetônico. Nesta emissão, são reproduzidas as obras da artista plástica Júlia dos Santos Baptista, chamada “Brasília em Cores”. De acordo com o edital, assinado pelo Comitê Executivo dos 50 anos: “Os selos desta emissão registram o inestimável patrimônio cultural e paisagístico representado por Brasília, e comunicam a beleza e importância dos monumentos, apresentados nos contextos urbanístico, arquitetônico e histórico”.

No mesmo ano, os monumentos da capital foram retratados em um bloco em formato diferenciado de pássaro. O desenho também tem ao fundo o esboço do Plano Piloto, dando destaque ao formato urbanístico da cidade traçado por Lúcio Costa. O selo foi lançado por ocasião do 16º Congresso Eucarístico Nacional, mais uma vez celebrado em Brasília. Este bloco ressalta novamente a ligação da Igreja Católica no contexto celebratório da cidade. Uma releitura, portanto, do que ocorrera no cenário filatélico em 1970.

Personalidades na construção da nova capital

Juscelino Kurbitcheck

JK foi o presidente responsável, em sua gestão (1956-1961) pela construção de Brasília. Tendo isso em vista, é impossível conhecer a história da cidade sem entender o período de seu governo. De acordo com Viviane Gomes de Ceballos (2005), boa parte da historiografia costuma construir uma relação simbiótica entre Juscelino e Brasília. E essa representação também foi feita no universo filatélico. Em todos os selos relativos aos Jubileus de JK, Brasília aparece representada. Destaque especial vai para o primeiro selo lançado, chamado “Aniversário do Construtor de Brasília Dr. Juscelino Kubitschek”, na qual a imagem do presidente não aparece, mas somente os monumentos da cidade e sua assinatura.

Neste selo de 1986, a simbiose com Brasília não deixa de estar presente. Contudo, o aspecto político, voltado para a presidência, é mais destacado, uma vez que a única construção representada é o Palácio da Alvorada. Entretanto, o texto do edital, assinado pelo Memorial JK, é basicamente voltado para a relação do presidente com a construção da cidade.

O último selo em homenagem a JK, pelo advento do seu centenário de nascimento, traz em sua imagem, novamente, com toda a força, a ligação do presidente com a construção da capital federal. Destaque para a representação feita dos “candangos”, trabalhadores construtores de Brasília, que foram representados unicamente nesta emissão. O texto do edital, contudo, assinado pelo historiador Ronaldo Costa Couto, enfoca bastante outros aspectos da vida e governo de Juscelino, não havendo centralidade temática em Brasília.

Lúcio Costa

Responsável pelo Plano Diretor de Brasília, selecionado via concurso público em 1956. O urbanista foi aquele quem concebeu todo o traçado da cidade, levando em consideração a função da mesma enquanto polo político, mas também as necessidades de seus moradores. As quadras do Plano Piloto, por exemplo, foram projetadas para que ficassem longe das vias principais de trânsito e fossem bastante arborizadas, proporcionando tranquilidade e conforto aos que nelas habitavam. Foi homenageado em selo pelo seu centenário do nascimento. Na imagem, é possível ver uma composição com Lúcio Costa,  o esboço do projeto do Plano Piloto e a esplanada dos ministérios, que, na concepção do urbanista, era um “braço estendido” da democracia (CEBALLOS, p.55).

Oscar Niemeyer

Outra personalidade indissociável das representações sobre Brasília é Oscar Niemeyer, responsável pela arquitetura monumental tipicamente brasiliense. Devido ao renomado por trabalho do arquiteto e pela sua ligação com a escola modernista no Brasil e no mundo, os dois blocos que o homenageiam mostram suas obras não só em Brasília, mas em todo o país.

Israel Pinheiro da Silva

Israel Pinheiro da Silva, político com atuação diversa no governo, foi o presidente da “Companhia Urbanizadora da Nova Capital” (NOVACAP), empresa de engenharia responsável pela construção de Brasília. Foi homenageado em selo postal pelo advento de seu centenário, na qual a figura do personagem aparece junto ao Congresso Nacional e ao projeto do Plano Piloto.

Brasília como ponto turístico e diplomático

A capital é representada em diversos outros selos postais que destacam suas potencialidades turísticas e no campo da diplomacia. Especificamente na “Série Relações Diplomáticas”, os pontos turísticos da cidade são retratados diversas vezes, frequentemente em conjunto com outros locais atrativos do Brasil. Assim, percebe-se como Brasília é entendida como cidade elementar para a representação artística e celebratória entre o Brasil e outros países.

Brasília foi considerada Patrimônio Mundial pela UNESCO em 1987 e, em comemoração aos 30 anos deste fato, foi lançada uma folha com diversas imagens da cidade. Percebe-se, nesta emissão, a focalização de aspectos nunca antes representados como, por exemplo, uma “tesourinha”[1].

[1] Gláucia Chaves chama a atenção para a utilização da palavra “Tesourinha”: o recurso semântico empregado na denominação é de natureza metafórica, porque os traços de conteúdo desse termo aproximam-no do objeto tesoura pequena. Tesourinha é uma pista que dá acesso às superquadras, cortando o Eixo-Rodoviário-Residencial.

Esses são alguns selos postais brasileiros que constroem a memória imagética de Brasília. Certamente, este é um motivo bastante frequente e nem todos os selos relativos à cidade estão presentes nesta exposição virtual. Contudo, a temática em termos filatélicos ainda não está esgotada. Muitos elementos de Brasília, da sua criação e história, passam ao largo das memórias por ora apresentadas nos selos postais. Por exemplo, os trabalhadores que construíram a cidade (somente uma vez representados), as pessoas comuns, seus habitantes iniciais que para ela migraram. Sua beleza natural a céu aberto e as quadras arborizadas que causam experiências únicas aos que nelas residem. Seus arredores, fora do Plano Piloto, que também fazem parte de suas narrativas históricas. Elementos que ainda podem ser explorados pela filatelia no futuro, uma vez que os selos postais são sempre parte da memória em construção. 21 de abril foi a data escolhida para celebrar o aniversário de Brasília. Não por acaso, também é a data que memoriza a figura de Tiradentes, simbolicamente adotado como representante de ideais republicanos. Com isso, os que escolheram esta data queriam reforçar a ideia da nova capital como centro político. Na próxima semana, traremos a Parte II desta exposição, com mais selos postais que reconstroem discursos sobre a história de Brasília.


Referências

AVLES, Lara Moreira. A construção de Brasília: uma contradição entre utopia e realidade. Disponível em: <https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/brasilia/arquivos/LaraALVES-AconstrucaodeBrasilia.pdf>

CERBALLOS, Viviane Gomes de. “E a história se fez cidade…”: a construção histórica e hisioriográfica de Brasília. Dissertação (Mestrado), Campinas, UNICAMP, 2005.

CHAVES, Gláucia. Das coisas de Brasília (e dos brasilienses). Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/revista/2013/04/21/interna_revista_correio,361398/das-coisas-de-brasilia-e-dos-brasilienses.shtml>

CORREIOS do Brasil. Editais de selos comemorativos e especiais. Disponível em

<https://apps.correios.com.br/biblioteca/index.html>

NAZÁRIO, Moisés. Muitos acreditam que santo italiano profetizou a construção de Brasília no século 19. Disponível em: http://www.senado.gov.br/noticias/especiais/brasilia50anos/not08.asp

Publicado em Filatelia, Programação Filatélica 2020 | 23 comentários
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