Os selos postais são fruto do seu tempo. Ou seja, tudo que se escolhe colocar dentro deste diminuto quadrado de papel está ligado ao contexto social e histórico no qual ele foi lançado. Os selos são, portanto, símbolos do conjunto de crenças, entendimentos e representações do que determinados grupos sociais escolhem marcar sobre o momento em que vivem. No que diz respeito à presença negra na filatelia, ela aparece em diferentes enfoques.
Uma vertente temática que dá visibilidade a esta questão são os selos que destacam personalidades negras, nas mais diversas áreas: literatura, música, esportes, dentre outros. As primeiras personalidades negras representadas em selos postais foram Carlos Gomes, grande compositor Brasileiro, em 1936 e Machado de Assis, um dos mais representativos escritores nacionais em 1939. Os dois, inclusive, foram representados em mais de uma emissão ao longo do tempo.
Nos esportes, destacam-se os selos em homenagem aos atletas Olímpicos Adhemar Ferreira da Silva e João do Pulo, em 1983 e 2016, respectivamente.
Por fim, no tema personalidades, merecem destaque os recentes selos, de 2019, que focalizam duas mulheres negras: a cantora Elza Soares e a escritora Carolina Maria de Jesus. Este é um grande marco para a filatelia brasileira uma vez que mulheres negras ainda foram pouco representadas em selos postais. Outras emissões mais antigas são da sambista Clementina de Jesus e de Maria de Conceição Nazaré, Mãe Menininho do Gantois.
Outra vertente diz respeito à questão da luta pela inclusão social. Os selos postais brasileiros da primeira metade do século XX representavam os negros em associação ao fim da escravidão. Assim, dava-se destaque ao abolicionismo e aos seus protagonistas da elite governante (como a princesa Isabel). Essa temática continuou a ser destacada ao longo do tempo, como se pode perceber pelo meio das seguintes emissões: Centenário da Lei do Ventre Livre, de 1971, Centenário dos Abolicionistas Precursores, de 1984 e Centenário da Abolição da Escravatura de 1988. Os selos dessa vertente, contudo, não abordavam que os problemas de racismo e exclusão social não foram resolvidos com a abolição.
Mas outros selos recentes tratam da problemática da inclusão. Entre o final do século XX e o início do século XXI, várias emissões destacam a resistência do movimento negro, políticas de igualdade racial, bem como diversos aspectos da cultura afro-brasileira. E isso se deu sobretudo devido a uma mudança de mentalidade social e da conquista de espaços por parte dos movimentos negros. Em 1971, após um protesto nas ruas, o dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, foi escolhido como o Dia da Consciência Negra. O objetivo era chamar a atenção para as desigualdades que ainda hoje persistem, bem como solicitar por melhores condições de vida para a população afrodescendente. Zumbi dos Palmares, líder quilombola morto em 1695, foi escolhido como símbolo do movimento. Utilizou-se, assim, da releitura de uma figura histórica para reivindicar questões do presente.
Todas essas ações tiveram repercussões algum tempo depois na esfera governamental. Em 1997, Zumbi dos Palmares foi incluído no livro de Aço dos Heróis e Heroínas Nacionais. Em 2003, a lei 10.693 colocou a obrigatoriedade do ensino de História da África e cultura afro-brasileira nas escolas. Esta mesma legislação indica que o Dia Nacional da Consciência Negra deve fazer parte do calendário escolar.
Os selos desse período ajudam a compreender o contexto no qual os movimentos negros conquistaram cada vez mais espaço nos ambientes políticos e governamentais. Então, a filatelia foi um meio de divulgação da participação e acesso desse grupo em lutas sociais. Ou seja, os selos podem ser entendidos como documentos oficiais, produzidos pelos Correios, representante do Estado, mas pleiteados por determinados grupos, que demonstram mudança no entendimento sobre quais pessoas e quais motivos deveriam ser divulgados diante da população mais ampla.
Um dos selos mais antigos associado a esse contexto é o relativo ao Ano da Luta Contra a Discriminação Racial, de 1971. Mais recentemente, o motivo continuou a figurar em emissões. Um exemplo é o bloco relativo aos 300 anos da Morte de Zumbi dos Palmares, de 1995. Este selo relaciona-se com a apropriação de Zumbi e da história de Palmares para levantar questões sociais do presente.


Os selos comemorativo e especial “Dia Nacional da Consciência Negra” e “Conferência Mundial contra o Racismo” também são exemplos disso. Ambos foram lançados em 2001 e possuem Editais assinados pela Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça. Isso demonstra como a questão já estava em voga nas esferas governamentais.


Em 2008, Zumbi dos Palmares aparece, em conjunto com outros, na folha de selos dedicada aos “Heróis Nacionais”. Essa é uma excelente forma de perceber como Zumbi, materializado em selo, foi reconstruído para simbolizar a luta dos movimentos negros do presente. Assim, a construção de “Heróis”, comumente feita no início da República, mais tarde também ganhou espaço para dar voz a grupos muitas vezes excluídos ao longo da história.

Uma emissão recente que remete à história de Palmares é aquela em homenagem ao Parque Memorial Quilombo dos Palmares, de 2012. Este selo, assim como a exposição filatélica “Orisun Asa: Celeiro de Brasilidade”, que se deu no Museu dos Correios, foram ações integradas às comemorações da Semana da Consciência Negra daquele ano. Em um âmbito mais geral, tais ações fizeram parte de um acordo entre os Correios e a SEPIR (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), celebrado em 2011, com o objetivo de promover a Igualdade Racial. Assim, é possível perceber como esta emissão esteve acompanhada de um contexto de ações dos próprios Correios e do Estado relativas à questão da igualdade racial. Por fim, merece também destaque o selo “Série América: Luta contra a discriminação racial”, de 2013. A “Série América” consiste na eleição de um tema comum todos os anos, a ser lançado pelas administrações postais integrantes da UPAEP. Portanto, percebe-se como essa questão atualmente tem cada vez mais espaço, não só no Brasil, mas em diversas outras partes do mundo.
Neste Dia da Consciência Negra, é importante refletir sobre questões ainda atuais e pertinentes na sociedade atual a respeito do tema. Os selos postais, se vistos como documentos passíveis de análise histórica, ajudam a compreender quais são os questionamentos e as demandas do presente e como, muitas vezes, elementos simbólicos e de comunicação ajudam a representar elementos cultuais que muitas vezes são esquecidos ou negligenciados ao longo do tempo.