O Alfabeto Manual da Língua Brasileira de Sinais: a Libras e as potências de Ser Surdo

arte da folha de selos: Fabio Lopez

“Eu tenho orgulho de ser Surdo!” – essa foi, e ainda é, uma poderosa afirmação feita por muitas pessoas surdas ao redor do mundo. Esse orgulho é a força motriz de um movimento que luta pela virada da compreensão social sobre as pessoas surdas e suas potencialidades individuais e coletivas. Ao lançar uma série de selos com o Alfabeto Manual da Língua Brasileira de Sinais, mais conhecida pela sigla Libras, os Correios, nesta emissão inédita, se tornam um forte apoiador da luta dos movimentos sociais surdos brasileiros. Além da confecção e emissão de um selo para cada uma das 26 formas da mão que representam as letras do nosso alfabeto em Libras, serão impressos selos com as palavras em Libras que traduzimos para o português brasileiro como “Libras”, “Eu te amo”, “Brasil” e “Brincar”. Uma ação muito significativa na difusão da Línguas Brasileira de Sinais e dos valores políticos e sociais que essa língua tem para as Comunidades Surdas do nosso país.

arte da folha de selos: Fabio Lopez

A escolha do alfabeto manual da Libras nos parece muito assertiva para esse momento em que o assunto ganhou visibilidade e despertou o interesse de brasileiros antes distantes do tema. Pois o alfabeto manual tem a função de fazer uma “ponte” entre palavras das línguas orais (Português, Inglês, Francês e outras) para às línguas de sinais. Ao soletrar manualmente a grafia dessas palavras, cada letra corresponde a um formato assumido pela mão, ocorre um fenômeno linguístico chamado empréstimo por transliteração1. É uma forma de transpor do sistema gráfico de uma língua para fisicalidade de outra, ou seja, do som escrito para o gesto sinalizado. O sistema soletrado é, desse modo, um instrumento de diálogo entre as línguas orais e de sinais. Algumas palavras em Libras, normalmente chamadas de sinais, podem apresentar referências às letras do alfabeto manual – como no caso do sinal usado para “Brasil” que apresentam um formato de mãos semelhante à letra “B”. Esse é um exemplo entre muitos outros de como o alfabeto manual se incorpora à língua; ainda que essa não seja condição geral para todas as palavras em línguas de sinais. Essas línguas não se limitam ou dependem das letras dos alfabetos manuais ou das línguas orais. São sistemas gramaticais complexos em si e tem na relação gesto-visão os elementos linguístico-cognitivos que estruturam essas línguas em todos os seus níveis. Desse modo, o lançamento de uma série de selos que divulgam o Alfabeto Manual, ao nosso ver, cumpre a função propagadora de um dos principais objetivos das Políticas Surdas: a difusão e reconhecimento social dos Saberes Surdos para o diálogo e aproximação entre a sociedade e os coletivos surdos compreendidos, enfim, como formas autênticas de ser e estar no mundo.

arte da folha de selos: Fabio Lopez

Não existe uma língua de sinais universal, como se fosse um código, compartilhada por todos os surdos do mundo. Em todos os países onde são encontradas, essas complexas línguas gestuais são fruto das interações entre pessoas surdas nos coletivos surdos. São produto dos processos de agrupamento e formação das próprias Comunidades Surdas. Agenciamentos interpessoais que fizeram emergir, ao longo dos séculos, as línguas de sinais como sistemas linguísticos próprios. Uma história semelhante, mas singular em cada parte do mundo. Essas línguas são vivas e estão intrinsicamente ligadas aos modos de cidadania experienciados pelas pessoas surdas em cada parte do mundo. Politicamente cada país registra, legisla e/ou desenvolve ações para suas respectivas línguas de sinais – ASL nos Estados Unidos, BSL na Inglaterra, LSCh no Chile, Auslan na Austrália, Libras2 no Brasil, entre outras. Ainda, tal como as línguas orais, em um mesmo país podemos identificar tanto regionalismos típicos pelo uso das Língua de Sinais em diferentes regiões, assim como podemos nos deparar com formas emergentes dessas línguas em localidades fora dos centros urbanos (como por exemplo, as línguas de sinais faladas por coletivos surdos indígenas em povos originários registrados ao longo da história de vários países).

arte da folha de selos: Fabio Lopez

As línguas de sinais são, talvez, o marco mais emblemático da diferença surda como uma outra possibilidade potente de vida humana. Uma produção singular e enriquecedora para a atualidade de nossas sociedades que buscam entender a própria diversidade que as constituem. Em muitos países, essas línguas são o caminho pelo qual as Comunidades Surdas elaboram e lutam pelo direito à autodeterminação e respeito aos seus modos de existir. Nesse contexto, vale destacar que, desde o século XVIII, a formação organizada das Comunidades Surdas e suas línguas de sinais, pelo mundo, foi marcada pela institucionalização educacional de crianças surdas nos modelos de internatos. No Brasil, em 26 de setembro de 1857, o Imperador Pedro II motivado pela proposta enviada por carta pelo educador surdo e francês E. Huet, funda no Rio de Janeiro, aquele que hoje conhecemos como Instituto Nacional de Educação de Surdos, o INES. Na época foi intitulado Instituto Imperial dos Meninos Surdos-Mudos, mas ao longo dos anos assumiu outros nomes e modos de funcionamento que refletem as políticas de Estado para formação dos cidadãos surdos em vários períodos de nossa história. Não temos registros de línguas de sinais faladas em nosso país antes dessa época – por mais que não se negue a possibilidade de terem existido. Contudo, a fundação do INES como um espaço educativo de surdos em formato de internato, assim como a criação de outras instituições brasileiras especificas para educação de surdos em várias capitais brasileiras nos meados da década 1960, é vista hoje por diversos especialistas em Libras como a principal política de formação dos agrupamentos que geraram as Comunidades Surdas brasileiras. Assim como da própria emergência da Libras, como língua humana desenvolvida no interior dessas instituições, é reconhecida como fruto da interação e produto do poder cognitivo-comunicacional das próprias pessoas surdas.

arte da folha de selos: Fabio Lopez

Um marco dos Movimento Surdos é a produção de novas concepções sobre as qualidades e dificuldades do Ser Surdo no mundo marcado pelo estigma da diferença como deficiência. Essa nova maneira de compreensão tem como principal bandeira o protagonismo das próprias pessoas surdas, suas experiências e modos de compreensão dos sistemas sociais, comunicativos e familiares. A visão surda sobre o mundo é, nessa perspectiva, mais do que apenas uma experiência com a aparente ausência do som. Afinal de contas o som é uma experiência física que não é só interpretada pelos ouvidos. Assim como a língua é uma experiência linguística que não depende exclusivamente da voz. Ser Surdo se trata, nessa luta, do reconhecimento da vivência integral e positiva do surdo no mundo. Uma produção de vida que vem não só afirmar os sujeitos surdos, mas também ensinar à toda sociedade que existem muito modos possíveis de ser e estar do mundo. São diversas outras culturas que pulsam em territórios simbólicos e reais ainda não mapeados, fronteiras pouco discutidas ou atravessadas.

arte da folha de selos: Fabio Lopez

Entre os principais valores que as políticas de ressignificação afirmativa das pessoas surdas e das línguas de sinais defendem, elencamos, de forma concisa, os seguintes seis princípios3 :

arte da folha de selos: Fabio Lopez

A Potência do Ser Surdo:

Em oposição às interpretações que são feitas sobre a surdez como deficiência, as Comunidades Surdas lutam pela ressignificação da visão negativa das humanidades surdas como incompetências. Nessa perspectiva, a surdez se torna uma condição de corpo como diversas outras. identificada no nascimento ou adquirida ao longo da vida, ser surdo é uma dentre as complexas diversidades que formam nossas sociedades. Isso ressignifica para as famílias, escolas, clínicas, religiões e toda sociedade que ser surdo não é não uma falta, incompletude ou doença que determina a anulação total das capacidades desses sujeitos. O convite desse pensamento é para não olharmos mais para surdez e seus efeitos como forças depreciativas que precisam ser corrigidas. É para enxergarmos os surdos como sujeitos integrais e complexos inseridos nas redes sociais humanas. A afirmação das línguas de sinais tem um papel fundamental nesse processo, pois elas se tornam as línguas pela qual os surdos se agrupam e mediam a vida no mundo. A potência em Ser Surdo está na constatação de que é possível ser surdo e feliz ao mesmo tempo4 , que os ganhos surdos5 podem contribuir muito para todos.

arte da folha de selos: Fabio Lopez

A Matriz Linguístico-cultural:

O surgimento de estudos que comprovaram que as línguas de sinais têm valor linguístico e estruturas gramaticais como qualquer outra língua, contribuíram também para compreensão de que os coletivos usuários dessas línguas, centralmente os surdos, compartilham estruturas, valores, imaginários e campos simbólicos próprios. Fruto das múltiplas e atravessadas relações da pessoa surda com o meio, as línguas de sinais intermediam construindo o elo entre a visão e a cognição. A criação de cursos de graduação em Letras Libras, a produção de Literaturas Surdas, os Festivais de Arte e Cultura Surda, as Associações e os Movimentos Sociais Surdos têm cooperado para difusão da Libras sem separar essa língua dos modos culturais de organização dos coletivos surdos brasileiros. A constatação de que existem culturas e línguas próprias aos coletivos surdos ultrapassa e acrescenta algo a mais à antiga ideia de surdez como um peso a ser superado. Das ciências clínicas que reduziam e se dedicavam a cura de orelhas defeituosas, esse olhar sociológico escolhe atentar às forças e potências dos processos subjetivos vividos pela integralidade dos sujeitos e coletivos surdos, suas línguas e culturas.

arte da folha de selos: Fabio Lopez

O Ouvintismo Estrutural:

Um assunto muito sensível que surge nos debates sobre a Libras e os Saberes Surdos é a denúncia de processos de opressão vividos pelos surdos. O conceito de ouvintismo6 foi proposto para designar os processos estruturais de preconceito e discriminação que negam a autenticidade das pessoas surdas, suas línguas e suas culturas. Nesse processo opressor, não as pessoas ouvintes, mas a ideia de que o normal e melhor é ser como as pessoas que ouvem, acaba orientando negativamente decisões e comportamentos políticos, educativos, religiosos e familiares. Os processos de institucionalização de crianças surdas, por exemplo, são carregados de relatos nos quais a obrigação de falar uma língua oral, de ler lábios e a proibição do uso de línguas de sinais eram prestigiados como condições indispensável para que os surdos fossem reconhecidos como sujeitos pensantes e sociáveis7 . Um movimento que olhava as Línguas de Sinais como mímica ou como gestos combinados insuficientes e dependentes das palavras e lógicas orais-auditivas. O ouvintismo não vê a alienação social das pessoas surdas como consequência do isolamento comunicacional e negação dos saberes produzidos pelos próprios surdos, mas como uma incompetência intelectual e comportamental produzida pela surdez. É contra e pela ressignificação dessas ideias enraizadas que se pautam as lutas dos surdos como Movimento Social legítimo.

arte da folha de selos: Fabio Lopez

As Culturas Minorizadas:

Compreender os coletivos surdos como movimento social historicamente situado entre outras minorias culturais é um passo importantíssimo para compreender os valores surdos. As línguas de sinais, como principal dispositivo político, não são uma proposta de negação das línguas orais. E, tão pouco, de segregação dos surdos. Politicamente, a bandeira levantada pelas Comunidades Surdas passa pelo bilinguismo – em nosso caso, por exemplo, Libras/Português. É, contudo, em oposição aos fantasmas de antigas práticas e concepções depreciativas e opressoras, que o movimento social surdo se compreende e se apresenta como minoria linguística. Uma luta pelo aperfeiçoamento das humanidades surdas que é respaldada por políticas linguísticas próprias. É para revogar a ideia de que a surdez produz atrasos intelectuais e comportamentais, que se aponta para restrição e privação de língua e cultura surda, essa sim, como principal produtor dos entraves para vida dos surdos. Luta-se para demonstrar que são os próprios surdos autores das ferramentas mais eficazes para o desenvolvimento das humanidades e cidadanias desses coletivos historicamente oprimidos. Há pontos de diálogo entre as comunidades Surdas e a sociedade. E as línguas e culturas surdas são as chaves de intermediação desses diálogos. Chave de abertura para novas leituras dos processos educacionais, econômicos e políticos que ao longo dos séculos moldaram as tensões entre as Comunidades Surdas e os modos como as sociedades negam ou dispõem direitos básicos e oportunidades às minorias.

arte da folha de selos: Fabio Lopez

Os Saberes Surdos:

As produções em coletivos surdos não formam apenas um conjunto de saberes tácitos e/ou discursivos passados entre as gerações de membros dessas comunidades. A experiência de Ser Surdo, de olhar para o mundo a partir desse corpo e dos valores das Comunidades Surdas têm feito emergir nas universidades e centros de pesquisa uma série de epistemologias que revisam os conhecimentos humanos antes e aparentemente consolidados. A saber, muito foi reformulado pelas consideradas grandes áreas a partir do que se investiga pelo Estudos Linguísticos das línguas de sinais, pelos Estudos da Tradução e, principalmente, pelos Estudos Surdos – como campo próprio de investigação socioantropológico sobre as pessoas surdas e os fenômenos associados a elas. Além dos novos quadros de produção sistemática dos saberes sobre os surdos, uma marca significativa dessa mudança de curso acadêmico-profissional é a entrada de pessoas surdas em diversas frentes de pesquisa, produção e intervenção da realidade social – tanto como consumidores, assim como produtores de conteúdo.

O Protagonismo Surdo:

A presença ativa de pessoas surdas é uma ferramenta importantíssima para afirmação legítima das línguas de sinais e das políticas desenvolvidas para as próprias pessoas surdas. Um exemplo, concreto que podemos suscitar são os contextos em que se deram a produção dos selos em Libras. Ao sermos procurados pelos Correios, o INES como centro de referência nos estudos e políticas para pessoas surdas, compreendeu que os mais aptos para análise e consultoria seriam os professores surdos que lecionam Libras na instituição. São eles os especialistas e os principais representados pelos efeitos desse projeto. Em nossa instituição de mais de 160 anos, desde a entrada desses professores efetivos surdos, há menos de dez anos, presenciamos uma forte concretização dos efeitos do protagonismo surdo. Um primeiro diretor surdo, alunos, chefes e equipes falando em Libras pelos espaços físicos e virtuais com muito mais frequência. Os modos surdos vão, enfim, reverberando uma série de mudanças institucionais inimagináveis há alguns anos. Quando os surdos deixam de ser mero objeto de estudo, informantes e sujeitos passivos nos processos institucionais, familiares e políticos para se tornarem, então, modelos e agentes autodeterminantes, produtores e pensadores, então, o jogo começa a mudar. A Libras se tornará a língua de uso e aquilo que chamávamos de acessibilidade será vista como procedimento comum. O orgulho de ser surdo se torna, então, uma prática crítica e sistematizada, uma política. Só assim, enfim, os surdos começarão a ocupar o lugar de escritores de suas próprias histórias. Escritores que falam sobre a vida, os conhecimentos e o mundo em outra língua potente e infinita em possibilidades. Uma língua que agora é trabalho também dos não surdos irem na direção de aprender e respeitar.

Ramon Santos de Almeida Linhares

Mestre, Tradutólogo e Pesquisador em Estudos Surdos

Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES/MEC

Ana Regina e Souza Campello

Doutora, Professora e Pesquisadora em Estudos Surdos e de Educação

Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES/MEC


[1] Cf. FARIA-NASCIMENTO (2009).

[2] Cf. Lei de Libras, nº 10.436/2004.

[3] Cf. LADD, 2004.

[4] Cf. McCLEARY. “O orgulho de ser surdo”, 2003.

[5] Cf. BAUMAN; MURRAY. “Deaf Gain: Raising the stakes for human diversity”, 2012.

[6] Cf. LANE. “A máscara da benevolência”, 1992.

[7] Cf. “Atas do Congresso de Milão para Educação de Surdos no Mundo – 1880”, entre outros estudos.

Publicado em Programação Filatélica 2020 | 6 comentários

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