Se por um lado vivemos o século da realidade virtual, da nanotecnologia e da inteligência artificial, por outro, nas nossas relações sociais, ainda estamos mergulhados em estruturas permeadas por hábitos antiquados, preconceituosos e injustos. Fatores como cor da pele, origem étnica ou de gênero ditam a forma como pessoas são tratadas, se terão mais ou menos oportunidades e, até mesmo, se viverão mais ou menos tempo.
Quando falamos em cadeia de vulnerabilidade social, mulheres negras ocupam o topo da lista. Isso quer dizer que toda negra que você conhece enfrenta batalhas mais duras para garantir seus direitos básicos. O racismo, somado ao machismo estrutural, torna as camadas de opressão e preconceito mais densas.
Há exatos 31 anos, um grupo de mulheres de 32 países da América Latina e Caribe se reuniu na cidade de São Domingos, capital da República Dominicana, para denunciar ao mundo essa dura realidade de violência enfrentada por elas relacionada ao racismo e machismo, não só nas Américas, mas também em todo o mundo.
Diante da importância do tema e reconhecendo a relevância da inciativa desse grupo de mulheres, a ONU instituiu, cinco anos depois, o 25 de julho como Dia Internacional de Luta da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha.
Mais de três décadas se passaram e a ainda há muito que se avançar no combate à violência de raça e gênero. As estatísticas mostram uma situação grave e trágica e, em tratando-se de mulheres negras, os dados são mais aterrorizantes ainda. Elas são mais vítimas de feminicídio e correm mais riscos com a mortalidade materna. No mercado de trabalho, a mulher negra é o grupo profissional que enfrenta a maior taxa de desemprego e que recebe as mais baixas remunerações.
Por trás das estatísticas, há histórias de vida, de luta pessoal de cada mulher negra para garantir o acesso a direitos básicos e às oportunidades profissionais, disponíveis de formas menos complexas e mais espontâneas para outros grupos de pessoas.
A gerente do Centro de Transporte Operacional (CTO) Porto Alegre, Tatiane Lopes do Nascimento, conhece bem as batalhas enfrentadas diariamente por uma mulher negra. Há 25 anos nos Correios, Tatiane entrou na empresa como carteira, profissão que exerceu por 11 anos. Já atuou em vários cargos de gestão e, há três anos, está à frente de uma unidade que, por características inerentes, costuma ser dominada por homens. Sob a gestão direta de Tatiane, está uma equipe de mais de 40 pessoas, que administra a maior frota dos Correios no Rio Grande do Sul, um total de 1.071 veículos.
“Das 44 pessoas que trabalham na gerência, somos em três mulheres. No geral, dentro e fora dos Correios, é comum as pessoas estranharem uma mulher e, ainda mais, negra, em cargo de liderança, principalmente numa área estritamente masculina, como é a de veículos e transporte. Aqui na empresa, recebo mensagens de colegas parabenizando pela conquista, dizendo que estão felizes por ter uma mulher no comando, justamente, por não estarem habituados”, comenta.
Para Tatiane, com formação em Direito, o estudo é uma das mais poderosas armas com a qual as mulheres podem contar na luta por uma sociedade igualitária. “Pelos exemplos que conheço, vejo que as mulheres que conseguiram alçar voos mais altos, são aquelas que investiram no seu autodesenvolvimento, estudaram, se preparam. No caso específico dos Correios, e de qualquer outra empresa, além da formação profissional, é importante envolver-se nos processos da empresa”, explica.
A superintende Executiva de Gestão de Pessoas dos Correios, Ângela Rosa da Silva, explica que a inclusão e diversidade nas organizações não impactam apenas no clima organizacional, mas também no negócio da empresa. “A falta de um grupo social em posições de chefias e espaços de poder acaba por diminuir as possibilidades de inovação e também de novos saberes e olhares que podem fortalecer o negócio. Para que empregados, empregadas, junto com as lideranças, tenham a compreensão da necessidade de inclusão das mulheres negras, temos que contar com sensibilização, por meio de desenvolvimento e formação, e com a transversalização do tema nos processos de gestão de pessoas”, explica a superintendente executiva, uma representante da mulher negra na alta gestão dos Correios.
Ângela sabe bem das dificuldades enfrentadas por uma mulher negra. “No meu caso, o primeiro desafio de vida começou quando entendi que precisava ser parte da geração da minha família que romperia com o ingresso nas profissões informais, que traziam, como consequência, uma vida precária. O segundo desafio foi ser a primeira pessoa da família a concluir o ensino superior. O período acadêmico foi intenso, cansativo e cheio de circunstâncias, que me fariam desistir, não fosse a persistência. Mas as mulheres negras precisam vencer desafios diários”, conta Ângela, que ingressou na empresa em 1996 como carteira e já passou por vários cargos de chefia, não só na área Operacional. No Correios Sede, a superintende já atuou também como gerente corporativa de Diversidade e Inclusão.
Correios: equidade racial e de gênero
Superar injustiças e a violência de raça e gênero requer um compromisso coletivo. Isso passa necessariamente pela mudança de consciência, e por isso, tanto os indivíduos como as organizações têm sua parcela de responsabilidade.
Nos Correios, as questões sobre equidade racial e de gênero são temas relevantes já há algum tempo. Há mais de uma década, a empresa aderiu ao Programa Pró-equidade de Gênero e Raça, ação instituída em 2005 pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, em parceria com a ONU Mulheres, com o objetivo de incentivar nas empresas a mudança da cultura organizacional no sentido de adotar ações e promover iniciativas que façam a instituição alcançar a igualdade, independentemente, da etnia, gênero ou classe social de empregados e empregadas.
Embora, como instituição pública, em que a admissão de empregados e empregadas se dá por meio de concurso e que os salários são definidos por cargos ou função, sendo igual para todos e todas, sem fazer distinção alguma de gênero ou raça, os Correios reconhecem que é preciso ir mais longe, avançar muito mais nessa área.
Pela primeira vez na história da empresa, a presidência da estatal conta com uma assessora especial para o tema diversidade: a socióloga Vilma Reis. Com mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia e, agora, concluindo o doutorado no Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos (POSAFRO), com a tese “Mulheres Negras – Criminalizadas pela Mídia, Violadas pelo Estado”, Vilma tem uma vida toda dedicada à luta pelos direitos humanos, principalmente contra o racismo e sexismo, inclusive atuando em atividades relacionadas ao tema no exterior.
Nos Correios, a socióloga está à frente do grupo de trabalho, criado recentemente, com o objetivo de promover a equidade racial e enfrentamento do racismo. “Para mim, estar nos Correios como assessora especial da presidência, transmite uma mensagem muito forte. Quando visitei o edifício-sede dos Correios, em Salvador, percebi que foi uma emoção muito grande para os trabalhadores e trabalhadoras de lá. As pessoas foram para o andar onde eu estava para ver que, de fato, os Correios teriam uma assessora negra na sede da empresa em Brasília, com cabelo rastafári, inclusive.”
Essa iniciativa dos Correios está alinhada ao compromisso do governo federal de adotar ações pautadas na agenda ASG (Ambiental, Social e Governança). O decreto 11.443, de 21 de março de 2023, estabelece que 30% das funções de liderança na Administração Pública sejam ocupas por profissionais negros.
“A gente precisa pensar como está a representação das mulheres negras nos lugares de decisão, do ponto de vista da gestão. Esse é um dos nossos desafios. A nossa tarefa é promover a liderança inclusiva, com foco no enfrentamento ao racismo, ao sexismo, à LGBTfobia”, disse Vilma.
Para marcar a agenda de atividades programadas pelos Correios este ano, em alusão ao Dia Internacional de Luta das Mulheres Negras Latino-Americanas e Caribenhas e ao Dia Nacional de Teresa de Benguela, a empresa promoveu nessa segunda-feira (24), o painel “Mulheres Negras no Serviço Público – Práticas e Ações para Avançar na Inclusão”.
O evento contou com a participação da pesquisadora e historiadora Wania Sant’Anna; da coordenadora do comitê de Equidade, Diversidade e Inclusão do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), Thais Dias Argolo; da coordenadora geral de Capacitação de Altos Executivos da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), Magali Zica de Oliveira Dantas; e da gerente de Relacionamento com Órgãos Externos dos Correios, Cristiane Ferreira Kovalski.
A fala das painelistas trouxe reflexões sobre os desafios da teia social e das instituições em promover a liderança inclusiva.
A pesquisadora Wania Sant’Anna pontuou que a igualdade é um ideal a ser construído cotidianamente. “Não somos todos iguais e podemos demonstrar essas desigualdades em relação às mulheres negras, às mulheres, aos negros, às pessoas com deficiência, à comunidade LGBTQIA+ e aos povos originários. Observar os espectros da desigualdade, no plural, é o melhor caminho para efetivar o ideal da igualdade”, completou a historiadora.
Thais Argolo falou sobre como o Serpro tem abordado a diversidade e a inclusão. A analista da empresa pública informou uma das metas desafiadoras assumidas pela empresa, de paridade de gênero nos cargos de chefia, 50% a 50%, para os próximos anos. Atualmente, as mulheres são 29% nas funções de liderança. O recém lançado edital Agora 3T, voltado para o patrocínio de iniciativas de inclusão sociodigital para pessoas trans e travestis foi outra ação mencionada por Thais Argolo. “Em breve, vamos lançar um novo edital relacionado a mulheres negras, indígenas ou que passam por situação de vulnerabilidade social. E a ideia é a mesma: possibilitar o patrocínio de projetos que tenham esse impacto social”, finalizou a representante do Serpro.
Magali Zica lembrou números que ilustram as tímidas alterações no perfil do serviço público, considerando o contexto da diversidade. A coordenadora da Enap acrescentou que apesar dos avanços em políticas afirmativas implantadas recentemente que propiciaram maior acesso à formação universitária, por exemplo, há ainda baixa mobilidade no perfil racial nas carreiras que exigem ensino superior. “Há ainda os desafios da baixa presença da população negra nas posições de liderança e a segregação e pouca evolução nos negros em cargos de poder e decisão. Destaco que todos os servidores e servidoras, não somente negros e negras, precisam ser mobilizados para o enfrentamento do problema público central que é a desigualdade sócio racial no Brasil”, disse a coordenadora.
A doutoranda em Direito e empregada os Correios, Cristiane Ferreira Kovalski, explanou um pouco da sua história para demonstrar a persistência da mulher negra que almeja muito mais daquilo que a sociedade oferece. A gerente, nascida em Salvador/BA, contou em sua fala como foi quebrar ciclos sociais, em uma realidade que trazia mais dificuldades que oportunidades. “A minha trajetória ainda está em construção. Mas o caminho que percorri até aqui pode ajudar a motivar, conscientizar e sensibilizar as pessoas para as dificuldades que uma mulher negra enfrenta para conquistar um espaço digno na sociedade”, disse Cristiane que, aos 16 anos, teve que se desdobrar para trabalhar, estudar e cuidar da mãe e dos irmãos mais novos. “Foi um período difícil, mas fiz questão de continuar estudando e permitir que meus irmãos também continuassem a estudar”, comentou a gestora dos Correios. Ela concluiu a primeira graduação com o apoio do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies) e após sua formatura, outros familiares buscaram também se formar.
Nesta semana, os Correios também destacam em seu site selos que reconhecem a força de duas importantes brasileiras negras: a escritora Carolina Maria de Jesus e a cantora e compositora Elza Soares. As peças filatélicas compõem a série “Mulheres Brasileiras que Fizeram História” e podem ser adquiridas no Correios Shopping.
Tereza de Benguela
No Brasil, essa celebração foi reforçada pela lei 12.987, de 2014, estabelecendo junto com a data internacional, a comemoração do Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. O tema, além de compartilhar dos objetivos e princípios da data instituída mundialmente pela ONU, procura ressaltar o papel da mulher negra na história do Brasil, tendo como exemplo Tereza de Benguela.
Tereza de Benguela foi uma líder quilombola e importante figura da resistência negra no Brasil colonial.
Tereza viveu no Quilombo Quariterê, localizado onde é hoje o Mato Grosso. Assumiu a liderança, quando o marido José Piolho morreu. Ela, então, passou a liderar a comunidade de escravizados fugitivos e seus descendentes.
A Rainha Tereza, como era chamada, exerceu uma liderança forte e carismática. Ela organizava a produção agrícola, a defesa do quilombo e a tomada de decisões importantes. Mulher negra e guerreira, Tereza lutou contra a escravidão e a opressão das autoridades coloniais.
O quilombo resistiu até 1770, quando foi destruído pelas forças de Luís Pinto de Sousa Coutinho. A população na época era de 79 negros e 30 índios.
Rainha Tereza teve um grande papel na luta pela liberdade e justiça social dos negros no Brasil.