Texto de Gercilio Cavalcante de Assis
Em 24 de dezembro de 2021, completam-se exatos 200 anos de emissão de um dos documentos que nos ajuda a entender os intricados rumos do Brasil em direção à emancipação política de Portugal, que ficou posteriormente conhecido como Manifesto Paulista. Trata-se da carta escrita por José Bonifácio de Andrada e Silva em 24 de dezembro de 1821, na condição de vice-presidente da então Província de São Paulo e personagem influente nos fatos que determinaram a autonomia brasileira.
No ofício, dirigindo-se a Dom Pedro I, José Bonifácio expõe-lhe o estado irremediável em que se encontram as relações entre os dois lados do Atlântico. Se, até pouco tempo antes, muitos homens da política eram favoráveis à continuidade com Portugal, a partir daquele momento o desenrolar das reuniões das Cortes em Lisboa revelavam que o Brasil poderia perder sua posição privilegiada no espectro político em favor do território português. Até então, o domínio americano ocupava a privilegiada posição de sede do Reino de Portugal, Brasil e Algarves, decretado em 1815 por Dom João VI, elevando-o ao nível da metrópole europeia. Por isso, o vice-presidente paulista pede ao Príncipe, em tom acalorado, que permaneça no país para, assim, evitar um possível o desmembramento territorial da América portuguesa. José Bonifácio chegou a aventar até a possibilidade de haver derramamento de sangue com a partida do regente.
O trecho abaixo da carta, reproduzindo a grafia e a pontuação da época, dá a exata dimensão do estado de aflição de Bonifácio diante das recentes exigências das Cortes de Lisboa, movimento reformista derivado da Revolução Liberal do Porto, de 1820, que buscava, entre outros objetivos, reconquistar a centralidade do território português, então limitada devido à condição do Brasil como centro do Reino de Portugal, Brasil e Algarves, e que, para atingir tal objetivo, exigiam o retorno de Dom Pedro:
“Sim, Augusto Senhor, é impossível que os habitantes do Brasil, que forem honrados, e se prezarem de ser homens, e mormente os Paulistas, possam jamais consentir em taes absurdos e despotismos: sim Augusto Senhor, Vossa Altesa Real deve ficar no Brasil, quaesquer que sejam os projectos das Cortes Constituintes, não só para nosso bem geral, mas até para a independência e prosperidade futura do mesmô Portugal. Se V. A. R. estiver (o que não é crivei) pelo deslumbrado e indecoroso Decreto de 29 de Setembro, além de perder para o Mundo a dignidade de homem, e de Príncipe, tornando-se escravo de um pequeno numero de desorganizadores, terá também que responder, perante o Céo, do rio de sangue, que de çerto vai correr pelo Brasil com a sua ausência; pois seus Povos, quaes tigres raivosos, acordarão de certo do somno amadornado, em que o velho Despotismo os tinha sepultado, e em que a astucia de um novo Machiavelismo Constitucional os pretende agora conservar.”
Dias após o ofício chegar-lhe às mãos, em 9 de janeiro de 1822, o Príncipe Regente, em desafio às imposições das Cortes de Lisboa, dirige-se ao povo concentrado em frente ao Paço Real, no Rio de Janeiro, para anunciar sua permanência no Brasil, na manifestação do Fico. Não há consenso entre os historiadores sobre os dizeres exatos do príncipe naquele momento, por haver divergências nos relatos, mas, em variadas pesquisas e obras, são atribuídas a ele as célebres palavras: “Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto! Digam ao povo que fico”.
O Dia do Fico, como o episódio entrou para a História, foi uma das decorrências das tensões entre Brasil e Portugal e essencial para compreender a complexidade do movimento de Independência. Se, no período da Revolução do Porto, muitas figuras políticas do Brasil apoiavam a instalação de uma Monarquia Constitucional e a continuidade com Portugal, a partir daquele momento, opta-se por uma outra via, de ruptura. A Independência, portanto, foi criada no calor do momento, sendo que a continuidade também era uma possibilidade.
Também denominada “Representação Paulista” ou “Deputação Paulista”, o manifesto idealizado por José Bonifácio teve ainda entre seus signatários seu irmão mais novo, o conselheiro Martim Francisco Ribeiro de Andrada; o presidente da província de São Paulo, João Carlos Augusto de Oeynhausen; e o brigadeiro Manoel Rodrigues Jordão, entre outros nomes, e foi aprovado por todo o gabinete do governo paulista de então numa sessão solene realizada naquele emblemático 24 de dezembro de 1821.
Embora o bicentenário do documento ocorra somente em dezembro, devido à sua relevância histórica – e por estar relacionado aos elementos propulsores da Independência do Brasil – os Correios estão lançando em 8 de setembro um selo comemorativo dedicado ao referido manuscrito chancelado pelo Patriarca da Independência, epíteto perpétuo ao qual José Bonifácio é atribuído por seu incontestável protagonismo nos episódios do rompimento dos laços da nação com Portugal.
Outro motivo da escolha da data da emissão é que 8 de setembro de 2021 é o primeiro dia do Bicentenário da Independência do Brasil.
A peça filatélica foi elaborada em estreita colaboração do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva e Colégio Militar de São Paulo (CPOR/CMSP). A instituição é afeita à figura de José Bonifácio especialmente por situar-se na antiga sede da Fazenda Santana, inserida no que é hoje o bairro de Santana, na zona norte da capital paulista, e onde, naquele longínquo 1821, foi abrigo residencial do Patriarca da Independência e de seu irmão Martim Francisco Ribeiro de Andrada. Naquela morada, já demolida e modificada no decorrer do tempo por seus diversos usos até tornar-se o aquartelamento do CPOR/CMSP, foi delineada a citada declaração endereçada a Dom Pedro de Alcântara.
Tamanho sentimento de afeição da entidade militar a um dos personagens da gênese do Brasil como nação levou o Comando do Exército Brasileiro a outorgar ao CPOR/CMSP, em 17 de maio de 2004, a denominação histórica de “Centro Solar dos Andradas”.
As imagens do conjunto iconográfico que ilustram o selo comemorativo contemplam parte da edificação do pátio interno do CPOR/CMSP, alcunhado “Pátio Patriarca da Independência”, e do busto da escultura batizada “A Entrega do Manifesto Paulista” (disposta em primeiro plano), de autoria do artista plástico Claudio Antonio Callia, que foi concebida e produzida neste ano. Na parte superior da peça filatélica, foi inserida ainda a assinatura de José Bonifácio, de modo a enriquecer o quadro pictórico. A presente emissão pelos Correios é uma forma de a Filatelia legar uma justa homenagem e reconhecimento ao protagonista do Manifesto Paulista.
Bibliografia:
OLIVEIRA, Hilton Meliande. “A Independência do Brasil”. Disponível em: <https://bndigital.bn.gov.br/dossies/rede-da-memoria-virtual-brasileira/politica/a-independencia-do-brasil/>Acesso em: (31/08/2021)
SALOMÃO, Ivan Colangelo. “O patriarca para além da Independência: as ideias político-econômicas de José Bonifácio de Andrada e Silva”. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/mwg-internal/de5fs23hu73ds/progress?id=ZElH3HHU-N7qSjIX5SXGMRrBNQpR925qaogxixOEVQU,>(30/08/2021)
“Independência do Brasil”. Disponível em: <https://www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/independencia-brasil.htm> Acesso em: (31/08/2021)