Escrito por Christina Habli Brandão Dutra
A 16º emissão de 2021 trás o Bloco Comemorativo dos 150 anos da Lei do Ventre Livre como expressão artística em que Diego Mouro promove uma reflexão sobre esta data. Diego (@diego.mouro) é artista autodidata e muralista, que vive e trabalha em São Paulo, oriundo da periferia de São Bernardo, ABC Paulista, e uma das maiores capitais metropolitanas do mundo com uma população majoritariamente negra.
Ele constrói sua trajetória artística a partir dos saberes e práticas ancestrais, transformando o processo de produção artístico em parte de um ritual e busca pelo resgate do passado uma ponte para a construção de novas narrativas de futuro e ressignificação do presente. Trabalhos que perpassam as questões raciais de dor e promovem o encontro de elementos e símbolos tradicionais da cultura negra e sua relação com o Brasil, buscando assim entender como nosso regionalismo foi construído em cima de hábitos africanos e de que forma foram transformados em costumes e crenças que só existem aqui como o congado e o candomblé.
Com técnicas e influências que vão da arte tradicional à arte de rua, passando pela pintura contemporânea, reflete sobre o completo estado de impermanência do ser e das coisas enquanto mistura realismo e traços inacabados. Seus trabalhos respeitam a tradição do muralismo e constroem uma narrativa não verbal, compartilhando conhecimento e sendo parte de processos formativos na construção de uma nova narrativa histórica da arte e das culturas tradicionais.
A arte pode ser entendida como a atividade humana ligada às manifestações estética ou comunicativa, através de uma grande variedade de linguagens, como arquitetura, desenho, escultura, pintura, escrita, música, dança, teatro e cinema. Assim, pode ser expressa em diversas formas e tamanhos, seja nas grandes telas de quadros presentes em museus de todo o mundo, seja em um bloco postal ou em um selo.
A arte pulsa em sua forma de expressão e nesta emissão Diogo usou e abusou de técnicas e formatos para traduzir em sensibilidade e reflexão os traços de sua obra. Idealizada em formato digital, a peça ganhou mais nuances nas pinceladas de uma pintura a óleo em uma tela de 1,20 x 0,80m que foi digitalizada pelo Museu Afro Brasil, nosso parceiro nesta emissão, para então virar selo.
Confira a seguir o nascimento desta obra de arte.
Bloco Postal 150 anos da Lei do Ventre Livre
“Corpos negros, nascidos, são livres ainda hoje?”
Esta é a reflexão que Diego propõe com sua arte que traz duas crianças negras brincando como o ápice simbólico da liberdade. Elas sorriem, saltam, quase como se voassem livres. Os lençóis e os varais presentes na obra figuram como elementos simbólicos, remetendo ao resgaste dos afetos criados no interior das famílias. O artista se insere nessa lembrança nostálgica, através da figura de sua avó e no afeto que ela colocava no trato com as roupas.
As camadas sobrepostas das peças no varal se conectam a este lugar da memória, a esses afetos familiares que se constroem e que, de alguma forma, protegem e prezam por essas vidas e liberdades. Todavia, essa ideia de construção afetiva de família é também atravessada pela ameaça constante às vidas negras, exercida por um estado que insiste em mantê-las prisioneiras de estigmas e encarcerá-las continuamente, completa o artista.
Por isso, uma sombra ameaçadora se insinua atrás dos lençóis, representando os diversos braços institucionais que mantém essas vidas vigiadas, reféns do medo e da lembrança de que liberdade não é algo definitivo para a população negra brasileira.
A imagem problematiza, desse modo, a celebração dos 150 anos da Lei do Ventre Livre. Enquanto os selos exaltam a liberdade, os sorrisos e a beleza no cotidiano nas vidas negras, o bloco propõe uma reflexão sobre o significado e valor da liberdade no Brasil.
Diante deste olhar que nos faz pensar, trazemos aqui uma breve entrevista com o artista do selo Diego Mouro.
Como foi o seu processo criativo para esta emissão?
Uau, que pergunta complexa! Foi um processo novo, a muitas mãos, se iniciou pelo convite do Museu Afro através da figura do Emanuel, depois iniciou-se uma conversa com os Correios para desenvolvimento dessa arte. De início levantei algumas questões que julgava pertinentes a “celebração” de uma data como a Lei do Ventre Livre, para mim, uma data que não deveria ser celebrada e sim questionada. Trouxe essas questões para a equipe dos Correios e tivemos reuniões interessantíssimas sobre a possibilidade da criação, pela primeira vez talvez, de um trabalho, num selo comemorativo, que questionasse a data, ao invés de celebrá-la. Como artista, julgava que era meu papel trazer reflexão e atenção sobre datas como essa e foi interessante ver, coletivamente, tanto o Museu Afro, quanto os Correios, abraçarem essa ideia e toparam isso comigo.
Depois disso mergulhei sobre a grande questão incomodo pra mim nessa data, que era: em 2021 quais são os corpos realmente livres? Me intrigava uma lei que determinava que corpos pretos eram ditos livres a partir do seu nascimento, mas que isso, até hoje, não acontecesse efetivamente. Me debrucei sobre essas sensações tantas de falsas liberdades e vigilâncias sob esses corpos pretos. Como pintor fazia questão de que esse trabalho fosse uma pintura a óleo, por ser a técnica principal ao qual apresento meu trabalho. Queria que esse fosse um trabalho de arte que refletisse sobre questões do seu tempo, mas numa técnica centenária, e que essa arte pudesse ser replicada em selos, e alcançasse as milhares de pessoas e localidades por esse país. Para mim, era importante que o chegasse na casa das pessoas, acompanhando uma carta ou algo do gênero, fosse literalmente uma obra passível de ser vista num museu, que fosse exatamente a mesma coisa e não tivesse essa diferenciação. Que o museu chegasse até a casa daquela pessoa.
Uma de suas outras atividades é ser professor. Houve um processo colaborativo com os seus alunos na elaboração do conceito e da linha criativa?
Foi interessante compartilhar isso com os alunos, eles são sempre muito interessados no processo de produção dos trabalhos a óleo e fiz questão de dividir com eles cada passo que dei, desde o rascunho a estruturação da tela, até a pintura e finalização. Validei junto a eles algumas ideias, era importante entender se a mensagem era clara e entendível, e foi importante que eles fizessem parte disso pra mim.
Qual a mensagem a ser passada com a arte?
A ideia era exatamente levantar a questão: “Em 2021, corpos pretos nascem livres?”. Isso me levou a questionar essa falsa liberdade que existe sobre esses corpos, numa sociedade que pratica uma necropolítica disfarçada, que mata um jovem negro a cada 18 minutos, que encarcera massivamente a população negra, que sexualiza seus corpos, como nessa sociedade podemos falar que corpos negros são livres? Na tela, trago essa perspectiva colocada sobre o olhar de duas crianças brincando, teoricamente livres, mas que estão ali, de alguma maneira vigiadas, por braços do estado e da sociedade, que seguem atuando de maneira furtiva, nas sombras.
Como é para você sua arte estar documentada em selo?
Uma oportunidade incrível de ver meu trabalho alcançar pessoas e lugares que uma tela num museu, ou exposta apenas na internet, não alcançariam. De ter a possibilidade de ver aquelas pessoas se sentirem tocadas, encantadas, e até questionarem, o trabalho de maneiras antes inimagináveis pra mim. Sem falar da importância histórica de ter um trabalho documentado em seu momento, um trabalho que possa ser usado como registro histórico de um momento de um país e de uma sociedade.
Esta peça de arte está à venda na loja virtual e nas principais agências de Correios. Compre já o seu.